A Cultura Japonesa da Tranquilidade no Caminho do Slow Travel
- Fernanda Paula
- 29 de mai. de 2023
- 11 min de leitura
Atualizado: 5 de nov. de 2024

Apreciar a beleza da imperfeição e do desgaste do tempo, contemplar gestos delicados e manter-se presente, calmo e sereno são atitudes que muitas vezes procuro cultivar em minha vida.
Quando não consigo praticá-los no dia a dia, encontro a oportunidade de exercitá-los durante minhas viagens ou momentos de lazer.
Para aqueles que têm uma inclinação à introspecção, buscar ambientes isolados e silenciosos ou adotar práticas rituais pode ser importante para manter certo equilíbrio emocional, especialmente em um mundo que parece assemelhar-se, muitas vezes, a uma distopia.
No meu caso, descobri que viajar de forma mais lenta tornou-se uma maneira de revitalizar minha mente, afastar pensamentos negativos e restaurar minha fé na humanidade.
A busca pelo bem-estar físico e mental varia de pessoa para pessoa, e tenho pesquisado assuntos relacionados ao Movimento Slow para entender melhor como isso funciona.

Ao explorar a "cultura japonesa da tranquilidade", percebi que algumas tradições, embora tenham sido influenciadas pela ocidentalização, ainda são valorizadas e refletem virtudes importantes.
O zen, os jardins japoneses, as artes tradicionais, os banhos termais e o minimalismo são exemplos de expressões dessa cultura que promovem a calma e a serenidade.
Vejamos algumas características de cada uma delas:
O Zen: Uma tradição do budismo que enfatiza a meditação e a contemplação para alcançar a "iluminação". No Japão, o zen está presente em templos, jardins e práticas como a cerimônia do chá. A busca pela paz interior e pela tranquilidade é um valor importante.
Os Jardins Japoneses: Famosos por sua beleza serena e harmônica, esses delicados jardins são projetados com cuidado, incorporando elementos naturais, como pedras, água, musgos e plantas cuidadosamente dispostas. Eles são projetados para estimular a contemplação e a conexão com a natureza.
As Artes Tradicionais: Muitas formas de arte japonesa, como a caligrafia, a pintura, o ikebana (arranjo floral) e a cerâmica, são expressões de tranquilidade e simplicidade. Essas práticas enfatizam a atenção aos detalhes e a paciência, promovendo uma sensação de calma e serenidade.
Os Banhos Termais (Onsen): Esses banhos são uma parte importante da cultura japonesa, e são frequentemente associados à tranquilidade e relaxamento. As pessoas visitam "onsens" para mergulhar nas águas terapêuticas e desfrutar de momentos de paz, aliviando o estresse e as tensões do dia a dia.
O Minimalismo: A estética minimalista é valorizada no Japão, tanto na arquitetura como no design de interiores. A simplicidade, a organização e o uso de espaços abertos são características que ajudam a criar uma atmosfera tranquila e serena nos ambientes.
Embora alguns aspectos da cultura niponica sejam amplamente conhecidos por muitos de nós, há outros que são profundamente enraizados na subjetividade do país e que não são prontamente perceptíveis para alguém que tenha crescido no Ocidente.
Como exemplo, temos as seguintes expressões, manufaturas e ritos que até se tornaram práticas filosóficas: Shikata ga nai, Wabi-sabi, Chanoyu, Ikebana e Shinrin yoku.

Shikata Ga Nai: A Arte da Aceitação
A expressão “Shikata ga nai”, usada no idioma japonês, é amplamente conhecida e praticada pela população, como parte de sua forma de lidar com os desafios da vida.
Grosso modo, “Shikata ga nai” ou “Shou ga nai” significa “não tem jeito” ou “não pode ser ajudado”. Em português, podemos traduzir como: “É o que é”.
Apesar de parecer uma forma de “conformismo” para nós ocidentais, na verdade, a frase está mais próxima do conceito de "resignação".
A atitude de "não levar tudo muito a sério" tem suas raízes na história do país, marcado por desastres naturais frequentes.
No Japão, a expressão está intimamente ligada ao conceito de "gaman", que significa “suportar ou perseverar diante da adversidade”. Gaman é considerado uma virtude altamente valorizada, pois incentiva as pessoas a aceitarem as dificuldades com paciência e resiliência.
Essa mentalidade reflete uma visão profundamente influenciada pela crença budista da impermanência e da natureza cíclica do universo. Isso significa que, encarar as adversidades é parte intrínseca da existência, e buscar encontrar a paz interior é possível por meio da aceitação e da capacidade de se adaptar.
Além disso, o conceito incentiva-nos a focar os pensamentos das bem-aventuranças do momento presente.
O "Shikata ga nai" se aproxima do Movimento Slow ao valorizar o aqui e agora, a busca de uma perspectiva mais tranquila e a adaptação às circunstâncias.
No contexto do Slow Travel, viajar se torna uma pausa que convida à reflexão, apreciação e valorização das experiências.
Ao adotarmos uma mentalidade flexível e leve, como ensina o "Shikata ga nai", podemos cultivar, tranquilidade, resiliência e uma conexão mais profunda com o mundo ao nosso redor.

Wabi-Sabi: A Beleza da Imperfeição
Wabi-Sabi é uma estética japonesa única que valoriza a beleza imperfeita, a simplicidade e a transitoriedade.
Originário no Japão, o termo se estende para além do mundo estético, influenciando a filosofia, a arte e até mesmo a forma como as pessoas vivem suas vidas.
A expressão tem suas raízes no Japão feudal, durante o período Muromachi (séculos XIV a XVI), com bases nos ideais do Zen Budismo.
Inicialmente, esses termos eram independentes, com "wabi" referindo-se à simplicidade e modéstia e "sabi" descrevendo a beleza que se desenvolve com o tempo.
Com o tempo, os dois conceitos foram unidos para formar o termo "wabi-sabi", uma expressão que celebra a imperfeição e a impermanência da existência.
Podemos elencar alguns princípios que regem o Wabi-Sabi:
1. Imperfeição: No wabi-sabi, a imperfeição é valorizada em vez da perfeição estereotipada. É reconhecido que nada é perfeito ou eterno, e a beleza pode ser encontrada nas irregularidades, nas marcas do tempo e nas características únicas de um objeto ou pessoa.
2. Simplicidade: Esta estética valoriza a simplicidade e a modéstia. Ao invés de ostentação e extravagância, são apreciadas as formas simples e despretensiosas, que trazem uma sensação de calma e serenidade.
3. Transitoriedade: O wabi-sabi reconhece a natureza efêmera de todas as coisas. É valorizada a beleza que vem com a passagem do tempo e as marcas deixadas pelo uso e envelhecimento. A aceitação da impermanência é uma parte central desta "filosofia".
4. Naturalidade: A natureza desempenha um papel fundamental. É valorizada a autenticidade e a conexão com o mundo natural. Materiais orgânicos, como madeira, pedra e cerâmica, são frequentemente usados, e a influência da natureza é refletida na simplicidade e na irregularidade das formas.
5. Aceitação do Incompleto: Essa "arte filosófica" celebra o incompleto e o inacabado. É dada importância ao espaço vazio, à sugestão em vez da explicação completa. Essa abertura permite que a imaginação do observador preencha as lacunas e participe ativamente da experiência estética.
6. Quietude e Contemplação: O wabi-sabi encoraja a quietude e a contemplação. É uma estética que convida à reflexão silenciosa e à apreciação dos momentos simples da vida. Através da contemplação, é possível encontrar beleza naquilo que é fugaz e imperfeito.

Como notamos acima, a expressão transcende a mera apreciação visual e influencia a forma como vemos o mundo e vivemos nossas vidas.
O conceito japonês compartilha uma abordagem semelhante aos princípios do Movimento Slow, na medida em que busca uma conexão mais profunda com o presente e uma apreciação da simplicidade.
Ao integrar os conceitos do Wabi-Sabi com os princípios do Movimento Slow e do Slow Travel, podemos cultivar uma maneira de viver e viajar mais gratificante e enriquecedora.
Essas "filosofias" nos convidam a abrandar, encontrar a beleza nas coisas imperfeitas e efêmeras, e descobrir a riqueza e a satisfação em momentos simples e autênticos.

Chanoyu: A Cerimônia do Chá
A cerimônia do chá japonesa, também conhecida como chanoyu ou sadō, é uma prática tradicional que envolve a preparação e o serviço cerimonial do chá verde em pó, chamado matcha.
Influenciada pelo Taoísmo e pelo Zen Budismo, a cerimônia do chá é um ritual que busca a harmonia, a simplicidade e a tranquilidade.
A prática requer um conhecimento amplo de diversas artes tradicionais que fazem parte do chanoyu. Isso inclui o cultivo e as variedades de chá, o uso correto das vestimentas japonesas (kimono), a caligrafia, a arte de arranjar flores, a cerâmica, a etiqueta e os incensos.
Mesmo para participar como convidado em uma cerimônia formal, é necessário ter conhecimento dos gestos e frases pré-definidos, saber como se comportar adequadamente na sala de chá e como servir-se de chá e doces.
A etiqueta e a atenção aos detalhes são fundamentais na cerimônia, e cada movimento e ação têm um significado simbólico.
A cerimônia do chá é uma prática que vai além de simplesmente beber chá. Ela busca cultivar a atenção plena, a conexão com a natureza e a apreciação da beleza nas coisas simples e imperfeitas. É um convite para desacelerar, refletir e desfrutar do momento presente.
Através desse ritual, os participantes são convidados a experimentar a harmonia, a serenidade e a simplicidade, encontrando um momento de tranquilidade em meio às demandas da vida cotidiana.

Ikebana: O Caminho das Flores
A arte da Ikebana tem raízes profundas na cultura japonesa e sua origem remonta a Siddhartha Gautama, o Buda. Desde os primórdios do budismo, as flores estiveram associadas aos ensinamentos espirituais.
No século VI, o monge Ono-no-Imoko viajou à China como embaixador do Japão e lá se aprofundou nos fundamentos do budismo, incluindo a arte das oferendas florais. Ao retornar ao Japão, tornou-se monge e adotou o nome monástico de Senmu Ikenobo.
No Templo Rokkakudo, monges de gerações sucessivas desenvolveram habilidades em arranjos florais, considerando-o o berço da Ikebana como a conhecemos hoje.
Durante o século XV, o monge Senkei Ikenobo ganhou destaque como mestre dos arranjos florais, e o costume de criar arranjos delicados e ornamentar altares com flores se popularizou cada vez mais com a expansão do budismo no Japão.
O termo "Ikenobō" passou a ser usado tanto para descrever a origem da Ikebana quanto para se referir à mais tradicional escola de arte floral.
As primeiras referências aos arranjos florais em vasos podem ser encontradas nos registros poéticos dos séculos VIII e IX, na coleção de poesia japonesa Man'yōshū.
Manuscritos antigos, como o Kaō irai no Kadenshō e o Senno Kuden, datados do século XV, estabeleceram a prática da Ikebana como uma filosofia e uma forma de arte.
Esta antiga técnica é influenciada pelo pensamento filosófico japonês, especialmente pelo conceito de Wabi-Sabi, que valoriza a simplicidade, a imperfeição e a transitoriedade.
Os arranjos florais buscam expressar a beleza natural das flores, bem como transmitir uma mensagem emocional e espiritual por meio da combinação de elementos vegetais, espaço e forma.
Criar Ikebana é trilhar o caminho das flores, conhecido como Kadō - uma prática que une a apreciação da natureza e a expressão artística - além de cultivar a tranquilidade interior e a atenção plena.

Shinrin yoku: Banho de Floresta
O "banho de floresta", também conhecido como shinrin-yoku, é uma "terapia florestal" que envolve passar tempo em contato com a natureza para obter benefícios à saúde.
A técnica foi desenvolvida no Japão, em 1982, por iniciativa da Agência Florestal do governo japonês, e demonstrou diminuir o estresse, a pressão arterial e melhorar a concentração e a imunidade.
A prática consiste em caminhar lentamente, observar e se conectar com o ambiente natural, permitindo uma imersão completa dos sentidos.
Essa experiência promove uma sensação de calma duradoura, ajudando a lidar com o estresse e a agitação do cotidiano.
Para praticar o Shinrin-yoku, podemos seguir as seguintes etapas:
1. Escolha uma floresta ou área natural: Busque por uma área com vegetação densa, árvores, trilhas e uma atmosfera tranquila. Pode ser um parque, reserva natural ou floresta próxima.
2. Desconecte-se de dispositivos eletrônicos: Antes de entrar na floresta, desligue ou coloque no modo silencioso seus dispositivos eletrônicos, como smartphones, para evitar distrações e se concentrar no ambiente natural.
3. Caminhe lentamente e conscientemente: Comece caminhando pela floresta em um ritmo lento e tranquilo. Preste atenção aos seus passos, respire profundamente e esteja presente no momento.
4. Use todos os seus sentidos: Esteja consciente dos sons, cheiros e texturas ao seu redor. Ouça o canto dos pássaros, sinta o cheiro das plantas e toque nas árvores ou folhas. Permita-se mergulhar plenamente na experiência sensorial da floresta.
5. Encontre um lugar para se sentar e relaxar: Ao encontrar um local que lhe traga tranquilidade, sente-se e desfrute do ambiente. Observe os detalhes ao seu redor e permita-se descansar e relaxar.
6. Pratique a meditação ou mindfulness: Utilize técnicas de meditação ou mindfulness (atenção plena) para aprofundar sua conexão com a natureza. Concentre-se em sua respiração, observe seus pensamentos e deixe-os passar.
7. Interaja com o ambiente: Se sentir vontade, interaja com o ambiente natural. Aproximar-se de uma árvore, tocar na água de um riacho ou simplesmente se envolver com os elementos da natureza pode ser uma experiência tranquilizadora.
8. Permaneça o tempo que precisar: Não há um limite de tempo específico para o banho de floresta. Fique o quanto quiser e permita que a natureza lhe envolva e revitalize.
Assim como os princípios do Movimento Slow, o objetivo principal do "banho de floeresta" é desacelerar.
E conectar-se com a natureza, passeando ou viajando, é uma maneira de nutrir nossa mente e corpo.

A Cultura da Tranquilidade e a Viagem Lenta
A Viagem Lenta, baseada nos princípios do Movimento Slow, propõe uma abordagem turística diferenciada.
Algumas de suas características incluem - priorizar a qualidade da experiência em vez da quantidade de lugares visitados - buscando uma vivência mais calma e desacelerada.
Além disso, a atenção aos detelhes do ambiente, a auto-reflexão e os passeios intercalados com pausas constantes são incentivados.
Nesse sentido, podemos estabelecer conexões entre o Slow Travel e as expressões e práticas da cultura japonesa mencionadas acima, da seguinte maneira:
1. A Viagem Lenta compartilha a ideia de aceitação resignada (Shikata ga nai) ao valorizar a desaceleração e a aceitação do ritmo natural das coisas durante a viagem.
2. Assim como o Wabi-sabi, a Viagem Lenta enaltece a beleza encontrada na imperfeição e nos detalhes, buscando apreciar as sutilezas dos lugares visitados. Pense na arquitetura, por exemplo.
3. A prática do Chanoyu, a cerimônia do chá japonesa, está alinhada com o Movimento Slow ao promover a tranquilidade, a atenção plena e a apreciação do aqui e agora. Ambos convidam os viajantes a estar presentes e desfrutar conscientemente da experiência.
4. A valorização da simplicidade, harmonia e conexão com a natureza presente no Ikebana se relaciona com a Viagem Lenta, na medida em que, ambos buscam uma relação autêntica com o ambiente natural e a apreciação dos detalhes e belezas naturais.
5. Por fim, o Shinrin yoku, também conhecido como "banho de floresta", aproxima-se do Slow Travel, na medida em que ambos buscam estabelecer uma conexão íntima com a natureza, promovendo o bem-estar através da contemplação.
Na minha busca por compreender melhor o Movimento Slow e as características do Slow Travel, tenho realizado pesquisas sobre conceitos relacionados que considero essenciais nesse tipo de viagem.
Esses elementos incluem a desaceleração do ritmo de vida, a busca por alívio do estresse cotidiano e o resgate da nossa conexão com a natureza.
Para mim, explorar aspectos da filosofia, literatura e arte de outras culturas parece ser o caminho mais interessante para compreender por que sentimos o desejo de viajar mais devagar.
Esta foi apenas uma das etapas da minha jornada pessoal para tentar entender como todos esses conhecimentos se relacionam entre si.
Espero ter ajudado de alguma forma. Até a próxima!
📝 PRINCIPAIS REFERÊNCIAS DO POST*:
A arte da quietude: Aventuras rumo a lugar nenhum. Pico Iyer (2015)
Atenção Plena: Mindfulness. Mark Williams e Danny Penman (2015)
Kintsugi Wellness: A arte japonesa de nutrir mente, corpo e espírito. Candice Kumai (2018)
Shinrin-Yoku: The Art and Science of Forest Bathing. Dr. Qing Li (2018)
Wabi-Sabi para artistas, designers, poetas e filósofos. Leonard Koren (2020)
Wabi Sabi. Beth Kempton (2018)
Zen and Western Thought. Masao Abe (1985)
Niten.org.br | Olharbudista.com | Ikebana.org.br | Wikipédia
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*Nota: Este post é um editorial.
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